UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
ESPECIALIZAÇÃO EM FILOSOFIA E PSICANÁLISE
AURO JOSÉ DA SILVA RAFAEL
O CONCEITO DE INCESTO NA OBRA FREUDIANA DE TOTEM E TABU
ALEGRE
2010
O CONCEITO DE INCESTO NA OBRA FREUDIANA DE TOTEM E TABU
Trabalho desenvolvido como requisito básico para nota final da disciplina “Freud como teórico da modernidade bloqueada” com o professor Vladimir Safatle, do curso de Especialização em Filosofia e Psicanálise, da Universidade Federal do Espírito Santo, na modalidade EAD.
ALEGRE
2010
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Pretendemos com este trabalho, entender o conceito de incesto, a partir da obra freudiana do “Totem e Tabu” e para uma melhor compreensão, buscamos investigá-lo desde sua gênese. Assim, procuramos desenvolver um estudo da origem primitiva da humanidade, tendo por referência o ancestral australiano. Após, notamos que tal comportamento (do incesto) presente em nossa sociedade, bem como os tabus e os meios de combater essa prática são heranças que herdamos de nossos ancestrais primitivos.
Constatamos que na história da humanidade, o que conhecemos sobre o homem primitivo chega até nós através das diversas etapas de seu desenvolvimento, também o conhecemos pelo acesso a monumentos e implementos inanimados que restaram dele, das informações sobre sua arte, sua religião e sua atitude para com a vida, as relíquias e seu modo de pensar que sobrevivem em nossas culturas e costumes. Assim, observamos que existem homens de nossa contemporaneidade que comportam de modo semelhante ao comportamento dos povos primitivos, estes são considerados seus herdeiros e representantes diretos, além de terem um comportamento selvagem ou semi-selvagem, sua vida mental é retardada e conserva um estágio primitivo de desenvolvimento. Em nossa comunidade temos o caso do José que foi casado com Maria. Maria esteve muito doente e veio a falecer; José passou a viver maritalmente com a F. a filha de Maria, que era sua enteada e, com ela teve duas filhas, as quais quando chegou à adolescência, José passou a viver incestuosamente com as duas. Uma, conseguiu se libertar do domínio paterno saiu de casa e casou-se, a outra, ainda não consegue enxergar a situação como um problema, pois sofre de intensa paixão pelo pai... Atualmente, José foi denunciado à justiça e encontra-se foragido, F. (sua mulher) está internada numa Clínica Psiquiatra, pois, ao longo da convivência com José adquiriu problemas mentais e, ele aproveitou-se da situação para controlar seus remédios a bel prazer e piorar ainda mais a situação de F. fazendo-a passar por louca. F. não tem consciência da situação. A menina, uma das filhas de José com F., é menor e está na Casa de Passagem, freqüentando o 4º ano numa escola estadual. Ela nega tudo, diz gostar muito do pai e se faz de desentendida, quando questionada sobre o assunto.
Em Totem e Tabu, Freud utiliza-se do exemplo da organização social das tribos aborígines da Austrália para explicar a origem do incesto. Para isso ele adota a teoria do mito totêmico para nos apresentar que, desde o princípio, o homem estaria marcado pela vida em pequenas hordas que eram chefiadas pelo homem mais forte e mais velho, o pai primevo, considerado por todos, objeto de amor e identificação e tinha como principal
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função: impedir a promiscuidade sexual entre os membros do mesmo totem. Em determinado momento os irmãos se unem e matam o pai. Quando são tomados pelo sentimento de culpa, se vêem obrigados a ocupar o lugar do pai com um totem. O totem é um animal, podendo ser também um vegetal, ou ainda, um fenômeno natural, comum a todos e tem uma importante relação com todo clã, seu espírito é guardião, guia e auxiliar dos que se reconhecem como seus próprios filhos. Em contrapartida, os membros do clã têm a obrigação sagrada de não matar, nem destruir, e, de evitar comer a carne do totem, como outrora fizeram os filhos na horda primeva.
Assim Freud nos narra a origem do totem na sociedade primitiva:
“Naturalmente, não há lugar para os primórdios do totemismo na horda primeva de Darwin. Tudo o que aí encontramos é um pai violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que crescem. Esse estado primitivo da sociedade nunca foi objeto de observação. O tipo mais primitivo de organização que realmente encontramos, consiste em grupos de machos; esses grupos são compostos de membros com direitos iguais e estão sujeitos às restrições do sistema totêmico, inclusive a herança através da mãe.(...) Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer individualmente. Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima. O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força”. (Freud – Totem e Tabu)
A descrição do mito freudiano do pai primevo nos possibilita entender como que a figura do pai converge para a constituição da lei e a exigência de regulação social e as expectativas de satisfação sexual, uma vez que no mito, o que caracteriza a posse do macho não é a posse de bens, mas a posse de mulheres.
Percebemos, ainda, que em quase todas as tribos a característica do sistema totêmico é regida por uma lei que proíbe as relações sexuais entre pessoas do mesmo totem, bem como o seu matrimônio. A lei contra o incesto, ou melhor, a exogamia, quando vinculada ao totem, mais do que prevenir o incesto, impede com que o homem mantenha relações sexuais com as mulheres de seu próprio clã totêmico, ou seja, impede com rigor o incesto. Naturalmente, não se era de esperar que a vida sexual daqueles homens primitivos servisse de paradigma moral para nosso tempo, ou que seus instintos sexuais estivessem sujeitos a um elevado grau de restrição. Eles, pretendendo instituir uma
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organização social própria estabeleceram para si próprios o propósito de evitar relações sexuais incestuosas, agindo assim, evitariam também a punição da morte ou doença provocada pelo totem quando o tabu era violado.
“A exogamia vinculada ao totem realiza mais do que a prevenção do incesto com a própria mãe e irmãs. Torna impossível ao homem as relações sexuais com todas as mulheres de seu próprio clã (ou seja, com um certo número de mulheres que não são suas parentas consangüíneas), tratando-as como se fossem parentes pelo sangue. À primeira vista, é difícil perceber a justificativa psicológica desta restrição tão ampla, que vai muito além de qualquer comparação com os povos civilizados. Pode-se depreender dela, porém, que o papel desempenhado pelo totem como antepassado comum é tomado muito a sério. Todos os que descendem do mesmo totem são parentes consangüíneos. Formam uma família única e, dentro dela, mesmo o mais distante grau de parentesco é encarado como impedimento absoluto para as relações sexuais”. (Freud – Totem e Tabu)
No que diz respeito ao incesto, como pudemos observar em nossos estudos, ele (o incesto) é a relação sexual que ocorre entre parentes mais próximos, geralmente, entre pais e filhos, entre irmãos ou meio-irmãos, entre tios e sobrinhos e entre primos. Em alguns países, como o Brasil, este tipo de casamento é proibido por lei. Observamos também que biologicamente, a reprodução entre parentes próximos tende a aumentar o número de seres com o mesmo gene de determinada população, reduzindo, portanto, a variabilidade genética da mesma. Essa é talvez uma das possíveis explicações acerca do tabu do incesto: o incentivo à mistura genética. Mais importante, no entanto, talvez seja o incentivo a exogamia pela razão de que ela amplia as relações positivas e, sobretudo, comerciais entre grupos sociais distintos. Do contrário, não haveria a sociedade como a conhecemos, pois as famílias fechariam-se, eventualmente tornando-se um povo, uma etnia, à parte.
Ao analisar os tabus, Freud pretende apresentar soluções para o problema do incesto apresentado, assim, dando continuidade ao nosso trabalho, tentaremos estabelecer uma relação entre o conceito de tabu com a lei da exogamia. Das várias definições que nos são apresentadas acerca do conceito de tabu, temos que o tabu é uma proibição que surge na antiguidade primeva, ele se impõe por conta própria e até mesmo, de forma violenta; sua origem e fundamentos são desconhecidos, não dependem da revelação divina como as proibições morais ou religiosas.
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A compreensão freudiana nos permite estabelecer que o tabu é algo ‘sagrado’, ‘consagrado’, e, também, como ‘misterioso’, ‘perigoso’, ‘proibido’, ‘impuro’. Ele traz em si uma característica de algo inacessível, que não permite discussão, sendo principalmente expresso em proibições e restrições. As restrições do tabu são distintas das proibições religiosas ou morais. Pois os argumentos de imposição não passam pela vontade divina, mas se impõem por conta própria. Diferem das restrições morais, por não terem nenhum sistema que aponte como certas abstinências devem ser observadas e aponte os motivos para essa necessidade. As proibições dos tabus não têm fundamentação teórica e sua origem desconhecida, uma vez que são aceitas de maneira natural. Os tabus são proibições de antiguidade primeva que foram, em certa época, impostas a uma geração de homens primitivos. As mais antigas e importantes proibições ligadas aos tabus são, também, as duas leis básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os membros do clã totêmico do sexo oposto, e servem como meios para preservar a ordem social. Sua violação é punida severamente pela própria sociedade, ou o próprio tabu violado se incube de vingar.
“A análise dos tabus é apresentada como um esforço seguro e exaustivo para a solução do problema. A investigação sobre o totemismo não faz mais que declarar que ‘isso é o que a psicanálise pode, no momento, oferecer para a elucidação do problema do totem’. A diferença está ligada ao fato de que os tabus ainda existem entre nós. Embora expressos sob uma forma negativa e dirigidos a um outro objeto, não diferem, em sua natureza psicológica, do ‘imperativo categórico’ de Kant, que opera de uma maneira compulsiva e rejeita quaisquer motivos conscientes. O totemismo, pelo contrário, é algo estranho aos nossos sentimentos contemporâneos — uma instituição social-religiosa que foi há muito tempo relegada como realidade e substituída por formas mais novas. Deixou atrás de si apenas levíssimos vestígios nas religiões, maneiras e costumes dos povos civilizados da atualidade e foi submetido a modificações de grande alcance mesmo entre as raças, sobre as quais ainda exerce influência”. (Freud – Totem e Tabu)
De acordo com Freud, nosso inconsciente comporta-se de maneira semelhante ao comportamento do homem primitivo. Ele compara a psicologia dos povos primitivos com a dos neuróticos, ou melhor, compara o tabu com a neurose, embora ambos se distinguem por ser o tabu uma instituição social – cultural e as neuroses, possuem estrutura em que as pulsões sexuais predominam sobre as sociais. Com a violação do tabu surge o senso de culpa que é relacionado com a angústia e ao caráter neurótico obsessivo.
Freud nos apresenta ao longo do texto do Totem e Tabu que o homem selvagem, a partir de sua organização tribal, tinha horror ao incesto. Disso, podemos acrescentar à nossa
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compreensão que esse fato apresenta uma característica infantil e revela, segundo a psicanálise uma concordância com a vida mental dos pacientes neuróticos. A psicanálise nos mostra que a primeira escolha amorosa feita por um menino é incestuosa e que esses objetos proibidos são a mãe e a irmã. E que a medida que ele cresce, se liberta desta relação incestuosa. O neurótico, ao contrário, apresenta um alto grau de infantilismo psíquico, ou não consegue se livrar dessa atração incestuosa que predominara em sua infância ou a ela retornou. Para a mente neurótica, as fixações incestuosas da libido continuam a desempenhar o papel principal em seu inconsciente.
A partir da compreensão do incesto e estabelecido uma relação com as teorias freudiana de totem e tabu, temos que, no estudo de caso por nos apresentado, acreditamos que José e também sua filha neta é um típico caso de neuróticos, por não conseguirem dominar seus impulsos sexuais. Consideramos que José tem um comportamento selvagem, pois ele deixa que seus impulsos prevaleçam sobre a razão. Ele não deixa restringir sua prática, ao desconsiderar a exogamia como lei, ele sequer tem o senso de culpa.
A prática incestuosa de José vai contra as proibições estabelecidas pela sociedade. A sociedade denuncia, a punição seria a prisão, mas José vive fugindo da justiça e a filha menor, por gostar do pai, vive um caso de tabu ao preferir não falar do assunto quando questionada.
Parece-nos que José não tem princípios e nem valores, pois ele para manter sua prática incestuosa, faz valer-se de práticas como internar a enteada numa Clinica Psiquiátrica, mesmo que para isso venha se valer de métodos como da medicação de remédios para dopar a enteada para que a mesma seja considerada desequilibrada mental.
Ao desenvolver este estudo, trouxemos como objetivo buscar entender a prática do incesto presente em nossa sociedade. Para isso tomamos como referencial teórico a obra freudiana do “Totem e Tabu”. Pudemos perceber, ao longo de nossos estudos que a prática do incesto é tão antiga quanto a humanidade. Esta prática, porém, foi proibida quando o homem primitivo estabelece uma lei totêmica que consistia na exogamia – a proibição dos membros do mesmo totem em manter relações sexuais com os membros do sexo oposto. Assim, surge a proibição quanto ao incesto em que parentes próximos eram proibidos – tabu – de manter relações sexuais e a violação desta lei era punida com
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a morte. Notamos que por mais antiga que seja, a lei da exogamia se faz presente em nossa sociedade embora, muitos como o José não a respeitam, preferem fazer da mesma um tabu.
REFERÊNCIAS:
FREUD, S. Totem e tabu. In: Obras completas de Sigmund Freud; trad. Dr. J.P. Porto. Rio de Janeiro: Delta, s.d. p. 49-239. v.14.
SAFATLE, Vladimir. Freud como teórico da modernidade bloqueada/ Vadimir Safatle – Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta à Distância, 2010.
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